Skip to main content

A Curva

Uma vez caíra naquela curva. Andava de mobilete. Os garotos da escola mexeram nela, tiraram o cachimbo e o combustível não passava. Tentou ligar a motinho umas tantas vezes, consciente de ter havido algum tipo de sabotagem. Muito irritada, manteve a calma, quando o garoto se aproximou para ajudar e apontou, em cinco segundos, o defeito. Agradeceu para se ver livre e foi embora. "Paquera mais idiota!" Continuou o passeio vespertino, bons tempos de colégio, o vento no rosto, as obrigações adiadas, o jantar na mesa, todo o tempo do mundo... A mobilete, falhando de vez em quando, tinha que frear e manter a aceleração ao mesmo tempo. Numa dessas, na curva, derrapou! Mobilete deslizou para um lado e ela para o outro em um eixo de 45 graus. Levantou-se, suja da terra vermelha de Brasília, ralada, machucada, pegou a mobilete e conduziu-a andando, capengando, até a última casa da rua.

Já não era mais uma menina, tinha suas responsabilidades, trabalho, contas, problemas... Desceu a longa ladeira que levava à curva. Dirigia, não mais a mobilete, mas o carro conquistado no primeiro emprego. Uma tarde silenciosa, seguia tranquilamente, o único carro na rua.  O calor a incomodava, os vidros totalmente abertos, a tarde iluminada, nenhum movimento nas árvores que margeavam a pista. Iniciou a curva e foi quando viu, caídos, três corpos, um homem, uma mulher e uma menina, todos negros. Os cabelos fartos, escuros e crespos salpicados de barro. As roupas, claras e simples,  sujas com a terra vermelha: os vestidos da mulher e da menina, branco algodão estampado de pequenas florezinhas vermelhas; o homem, calças caqui, arregaçadas como as de um pescador, a camisa branca, dobradas as mangas, . Calçavam alpargatas de couro. Passou devagar por eles, ali caídos, inertes.Não havia sangue, mas a imobilidade dispensava maiores reflexões. Em uma dessas reações que não se explica, continuou dirigindo. Passou da curva, entrou na ruazinha imediatamente à esquerda.

Deu-se conta do estranho silêncio, da falta de movimento. Conforme descia a rua, maior a estranheza, mudo, tudo mudo, nem mesmo o canto dos pássaros.  O ar parado, abafado, aumentava a luz e o calor. Todas as janelas de cada uma das brancas casas estavam abertas. Alvas cortinas esvoaçavam através delas. Continuou descendo, a respiração suspensa. Chegou finalmente à casa do fim da rua. Ali também,  as cortinas  esvoaçavam no balanço do ausente vento. Virou à direita para entrar na garagem, o portão já estava aberto. Na pequena rampa de entrada, os três mesmos corpos negros, os mesmos leves vestidos sujos, as mesmas calças caquis, as mesmas alpargatas. Lá estavam, caídos, juntos,  na mesma posição.

Comments

  1. Nunca me esqueci desse seu sonho!!! Ca-ra-ca. Arrepiei. Bjo!!!

    ReplyDelete

Post a Comment

Popular posts from this blog

The kind of person who lights candles

  I am the kind of person who lights candles. This is now, not then. it is a recently acquired habit, one that has done me well. I light up candles every day. In the beginning of each class I set up an intention, I focus and I light the candle. I ask myself to be the light, to be the container, not the conduit. I am now the kind of person Who walks barefoot on the grass of my backyard and lets herself shower in the improbable rain of Brasilia in May.  The four elements rest now on my desk making my therapist smile when told about them, making her proud of myself and my journey. I am the kind of person that feels the connection with the elements, and nature and the universe, so new. I am again a newborn being. And it is not the first time, I have once died and it’s no secret. This time, however, I did not have to die. I had only to shed the old skin, the one who served me no more. I am still the kind of person who looks in the mirror and who wonders who this new being is. This new self

No espelho

  Olhei hoje para o espelho e me vi mais serena, me enxerguei com mais leveza. Não que esteja de fato mais leve, eu acho. Ou será que estou? Tenho ainda infinitas incertezas e dúvidas aos milhares, mas a imagem que me olhou de volta do espelho, não me olha com tristeza, dor pânico.     A imagem que vejo nesse espelho é de     calma, no olhar certa paz, talvez de se entender humana, imperfeita e aceitar essa condição.     Aqui, deste lado que estou, me observando no espelho, sinto ainda o coração encolher como se uma mão o quisesse esmagar. Encolhe-se para sobreviver e expande-se em seguida. Ao encolher-se, a respiração dá uma pausa e uma bolha de cristal sobe em refluxo, pausando ali no meio da goela. Assim que pode, o coração retorna a seu pulsar, seu ir e vir. Permanecem ali as dúvidas, as exigências, as demandas, mas também os desejos de só ser, irresponsavelmente ser e atender a cada quimera. Porque a vida é curta! A vida é sopro!    E o outro? Os outros? Todos os outros?  É precis

Sobre os artistas - Para Bruno Sandes

  Créditos da imagem: Jacobs School of Music Marketing and Publicity